Sabes que dia é hoje?
A Restauração foi um movimento histórico que levou
Portugal à independência no 1 de Dezembro de 1640.
A morte de D. Sebastião (1557-1578)
em Alcácer-Quibir, apesar da sucessão do Cardeal D. Henrique I (1578-1580), deu
origem a uma crise dinástica. Nas Cortes de Tomar de 1580, Filipe II de Espanha
é aclamado rei de Portugal (Filipe I de Portugal).
Filipe I
e os seus sucessores, Filipe II e Filipe III, não respeitaram o que tinha
ficado combinado nas Cortes de Tomar.
Os impostos aumentavam; a
população empobrecia; os burgueses ficavam afetados nos seus interesses
comerciais; a nobreza estava preocupada com a perda dos seus postos e
rendimentos; o império português era ameaçado por Ingleses e Holandeses e os
reis filipinos nada faziam.
Durante
sessenta anos Portugal sofreu o domínio filipino. No dia 1 de Dezembro de 1640,
os Portu gueses restauraram a sua independência e D. João IV foi aclamado rei de
Portugal.
Assim se iniciou a 4.ª Dinastia.
Mais uma vez, na senda das grandes
aventuras heroicas de Portugal, a História e a Lenda dão as mãos,
abraçam-se, confundem-se...
Isto
aconteceu há quase trezentos e cinquenta anos. Mais de três séculos envoltos na
bruma do passado. Mais de três séculos que guardam avaramente, ciosamente, o extraordinário
acontecimento. E nós hoje em dia mal conseguimos destrinçar a verdade da
fantasia,
a História da Lenda...
Tudo isto se passou em Lisboa naquela
manhã de 1 de Dezembro de 1640. A cidade fazia a sua vida normal. Pelo menos,
aparentemente normal. Mas o Terreiro do Paço regurgitava de coches. Todos com as cortinas
corridas... E quando no velho relógio da Sé soaram, lentas e pesadas, as nove
badaladas da manhã, logo todas as cortinas de todos os coches se abriram de
repente. Muitos fidalgos armados, vindos dos mais diversos lados, correram a
juntar-se em redor de Carlos de Noronha.
Ele
olhou-os num relance. E, depressa lhes falou também.
— Ei-la,
companheiros! É chegada finalmente a nossa hora... Avancemos desde já para o
Paço, pois precisamos de desarmar os castelhanos e os tudescos.
E num
gesto largo, impulsivo, apontou para a frente.
—
Vamos, companheiros!
Sem
palavras, irmanados pela mesma causa sagrada que ali os juntara, todos seguiram
entusiasticamente D. Carlos de Noronha.
E daí
a pouco tempo — o Paço era deles. Quem se poderia opor a essas dúzias de
valentes dispostos a jogar a vida em defesa do seu ideal? Estavam prontos para
tudo. Na sua maioria, esses homens tinham feito testamento, antes de jurarem o
compromisso final. Um pequeno grupo dominara sem demora a guarda dos
castelhanos. Outro grupo maior tomou conta dos alabardeiros, reduzindo-os a
impotência.
Então D. Miguel de Almeida subiu
a uma das janelas e falou ao povo, que vivia momentos de ansiedade e de
nervosismo à volta padre Nicolau da Maia.
Entretanto, D. António Telo e
mais alguns procuravam Miguel de Vasconcelos, o traidor. E vencendo a resistência de três
sectários acabaram por descobri-lo, escondido, de clavina em punho, no fundo de
um grande armário de papéis.
Aí
mesmo o mataram, sem dó nem piedade, que ele não merecia. E logo lançaram o
cadáver por uma das janelas abertas para o Terreiro do Paço, a fim de que o povo
se certificasse, com os seus próprios olhos, do bom êxito da empresa…
Mais
longe, sabendo o que se passava, sentindo o clamor da multidão e vendo em
perigo o seu poderio, a duquesa de Mântua encaminhou-se ousadamente para os amotinados.
— Que
é isto, portugueses? Onde está a vossa lealdade?
Foi D.
Carlos de Noronha quem avançou para responder. Segurava a sua espada ainda
tinta de sangue e tinha um sorriso irónico à flor lábios.
—
Permitis, Alteza, que eu fale em nome dos meus companheiros?
Ela
olhou-os, um por um. Felinamente. Raivosamente.
—
Basta!... Já sabeis que o Ministro expiou os seus crimes… Que mais desejais
agora?
Desta
vez, falou D.
Antão de Almada, avançando também para ela.
—
Senhora, sim!... Miguel de Vasconcelos pagou com a vida a sua traição!
Mas
nesse instante a fúria da duquesa cresceu.
—
Calai-vos, já vos disse!... Aqui quem fala sou eu!... E falo em nome do meu
rei… do nosso rei
Filipe…
Houve
uma risada de troça. De novo, D. Carlos de Noronha elevou a voz para dizer, em
nome de todos os outros:
—
Enganai-vos, Senhora… Nós só reconhecemos como nosso rei o senhor duque de
Bragança. E já o proclamámos. De hoje em diante, será D. João IVde
Portugal!
Atrás
dele, as vozes uniram-se num pequeno coro, surdo mas incisivo.
— Viva
D. João IV de Portugal!
A
duquesa de Mântua olhou em redor. Procurava uma saída ou uma tábua de salvação?
De qualquer modo, dirigiu-se para a janela.
— Já
que vós não me quereis entender, falarei então ao povo… Ao povo e à guarda…
Mas,
quando chegou junto da janela, viu que estava rodeada pelos conjurados. Era uma
ilha de desespero no meio de um oceano de força.
—
Senhora, não nos obrigueis a faltar-vos ao respeito!
Nem
soube quem tal dissera. Porém a cólera fuzilou no seu olhar. No olhar e na sua
voz.
— A
mim?... Como vos atreveis?
Mais
uma vez, D. Carlos de Noronha tomou a dianteira. E explicou, num tom rude mas
sincero:
—
Seremos obrigados a fazer Vossa Alteza sair por essa janela… se não quiser
retirar-se por aquela porta!
Ela
voltou a olhá-los. Já sem insolência nem superioridade. E agora foram os seus
olhos que vergaram. Vencidos. Humilhados.
Sem
mais palavras, a duquesa de Mântua saiu lentamente, acabrunhada, pela porta que
lhe apontavam...
Por
toda a cidade correram as novas da grande vitória. O velho, e heroico, e
destemido D.
Álvaro de Abranches gritara ao povo, emocionadíssimo:
—
Liberdade! Liberdade! Viva D. João IV! O duque de Bragança é o nosso legítimo
rei! O Céu restituiu-lhe a Coroa, para que o reino de Portugal ressuscite! A
promessa de Cristo a D. Afonso Henriques será cumprida! Vitória! Vitória!
E de
boca em boca, de rua em rua, de casa em casa, a notícia foi ganhando ecos de
apoteose. Já toda a gente sabia que Miguel de Vasconcelos fora morto e que a
duquesa de Mântua estava prisioneira numa das salas do palácio...
E
acrescenta a Lenda...
A
cidade vivia um verdadeiro delírio de euforia patriótica, tendo como fundo a
música vibrante e clamorosa de todos os sinos de Lisboa, tocando alegremente.
Dizia-se
que D. Antão de Almada, ameaçando de morte a duquesa de Mântua, vice-rainha de
Portugal, conseguira que ela assinasse uma ordem para que D. Luis del Campo entregasse
o castelo de Lisboa aos Portugueses — e que ele assim o fizera prontamente, sem
a mais leve hesitação ou o mínimo esboço de rebeldia. E que logo a seguir
tinham sido entregues também aos conjurados, pelos seus governadores, os fortes
de Belém, Cabeça Seca, Santo António e o castelo de Almada.
Era,
na verdade, o triunfo total!
Já
então D. Rodrigo da Cunha, arcebispo de Lisboa, rezara missa em ação de graças,
na Sé Catedral. E acompanhado por todos os cónegos do cabido organizou uma
emotiva procissão, que saiu pela porta grande da Sé…
Nessa
altura chegavam os conjurados, envoltos pela onda frenética do povo de Lisboa.
Traziam consigo a bandeira real, autêntico símbolo da Pátria Libertada. Tinham
ido buscá-la ao Senado. E foi ainda D. Carlos Noronha quem se antecipou aos
outros, dizendo ao arcebispo D. Rodrigo da Cunha, com voz plena de emoção:
—
Senhor, a vitória é nossa! E todos nós resolvemos entregar o poder em vossas
mãos enquanto el-rei D. João IV não chegar a Lisboa.
Havia
lágrimas em muitos olhos. Gargantas cansadas de gritar, mas que desejavam
gritar ainda mais. Mãos que se apertavam nervosamente, numa ansiedade de luta.
Corações descompassados.
Abriram-se
alas para o arcebispo passar ao encontro da bandeira. Tremia a voz do velho
prelado, ao dizer:
—
Apraz-me saber que triunfastes, meus amigos, meus irmãos em Cristo! Foi Deus
que assim o quis! Portugal é dos Portugueses e para os Portugueses!
E
logo, irresistivelmente, um clamor se ergueu, gigantesco, impressionante, a
espalhar-se por toda a cidade:
—
Liberdade! Liberdade! Portugal é nosso.
O
arcebispo olhou docemente a multidão que o rodeava. Conhecia muitos deles. Era
amigo de muitos deles. Confiava em todos eles.
— Meus
amigos, meus irmãos... Se assim o desejais, eu tomarei conta do poder... Mas
ele é pesado e grande demais para ombros tão frágeis como os meus... Queira
Deus que o nosso rei D. João IV não demore em vir tomar nas suas mãos o que lhe
pertence, por vontade dos Portugueses!
Todos
os que ali se encontravam baixaram a cabeça em silêncio espontâneo. Silêncio de
respeito. Silêncio de oração.
Depois,
D. Carlos de Noronha, como que num reflexo da vontade dos outros, ergueu de
novo a voz para pedir:
—
Senhor... em meu nome… em nome dos meus companheiros... vos rogo um grande
favor... Lançai a vossa bênção sobre nós, senhor! Lançai a vossa bênção sobre o
bom povo de Portugal!
Houve
uma breve pausa de expectativa.
Sempre
docemente, o arcebispo D. Rodrigo da Cunha volveu a sorrir. Sorriso de ternura.
E a sua cabeça embranquecida moveu-se lentamente, como que a recusar.
— Quem
sou eu, meus irmãos, nesta hora excecional de Fé e de Virtude, para vos poder
abençoar?... Sim, quem sou eu?
E
baixando a voz, tornando a sua confissão mais íntima, ele próprio respondeu:
— Sou
apenas um português como vós… um servo de Nosso Senhor Jesus Cristo!
E
então, perante o ar interrogativo dos outros, ajuntou num impulso de energia e
de bom senso:
— Ele
sim, meus irmãos, ele é que nos deve abençoar!
Vagarosamente,
misticamente, como que em êxtase, D. Rodrigo da Cunha, o venerando arcebispo de
Lisboa, ergueu os seus olhos para a imagem de Jesus Crucificado. E implorou, do
fundo da sua alma, mais com o coração do que com as próprias palavras:
—
Senhor, Nosso Deus e Nosso Pai... Para maior glória e felicidade nossa,
abençoai-nos!... Abençoai esta boa gente portuguesa, martirizada por sessenta
anos de cativeiro, mas que nunca deixou de acreditar em Vós... Abençoai-nos,
Senhor!
E —
prodígio dos prodígios — ele viu… viram todos quantos ali estavam... que o
braço direito de Jesus Crucificado se desprendia suavemente do lenho e se
estendia sobre a multidão, que ajoelhou de repente, abençoando-a para sempre!
Abençoando a sua vitória! Abençoando o seu futuro!
Por
momentos, ninguém se moveu. Todos pareciam petrificados. Alguma coisa lhes
embargava as vozes e os movimentos. Choravam e rezavam em silêncio. Mas, de
súbito, um ergueu-se. E logo outro. E outro ainda. E todos, afinal. Abraçando-se
e gritando:
—
Milagre! Milagre!...
Agora,
a vitória estava certa, absolutamente certa!
Portugal não mais voltaria a
deixar de ser Portugal!