Poema da Semana

PRL - o poema da semana

segunda-feira, 10 de Dezembro de 2012

​​​
 
A menina que veio do fundo do mar
tinha colado ao rosto um espanto sem medo
e uma densa manhã de mistério e de névoa
fluctuava nos restos do vestido de renda
 
a menina ondulava na crista vagarosa
tinha nas mãos de pedra ainda um sonho ileso
e entre a rocha e o abismo o corpo rosa
entre a gaivota e a anémona estava preso
 
por quatro deuses de fogo que em fluidez colhiam
com as foices de fogo trespassadas de tempo
a morta-flor surgida entre os naufrágios
como um véu entre a noite e o pensamento
 
na manhã sub-lunar era branca a memória
e da margem oposta à qual somos estranhos
um selo inviolável cobre a morta
para sempre apagando o nome aceso
 
 
Madalena Férin in A Cidade Vegetal
 

-------------------------------------------------------------------------------------------------

PRL - o poema da semana

segunda-feira, 3 de Dezembro de 2012
​​​

Autogénese
Nascitura estava
sem faca nos dentes
cómoda e impura
de não ter vontade
de bater nas gentes.
Nasce-se em setúbal
nasce-se em pequim
eu sou dos açores
(relativamente
naquilo que tenho
de basalto e flores)
mas não é assim:
a gente só nasce
quando somos nós
que temos as dores;
pragas e castigos
foram-me gerando
por trás dos postigos
e um fórceps de raiva
me arrancou toda
em sangue de mim.
Nascitura estava
sorria e jantava
e um beijo me deste
tu Pedro ou Silvestre
turvo namorado
do verão ou de outono
hibernal afecto
casca azul do sono
sem unhas do feto.
Eu nasci das balas
eu cresci das setas
que em prendas de sala
me foram jogando
os mulheres poetas
eu nasci dos seios
dores que me cresceram
pomos do ciúme
dos que os não morderam;
nasci de me verem
sempre de soslaio
de eu dizer em junho
e eles em maio
de ser como eles
às vezes por fora
mas nunca por dentro
perfil de uma estátua
que não sou de frente.
Nascitura estava
e mais que imperfeita
de ser sorte ou dado
que qualquer mão deita.
Eu nasci de haver
os bairros da lata
do dedo que escapa
dos sapatos rotos
da fome que mata
o que quer nascer
e que o sábio guarda
em frascos de abortos;
eu nasci de ver
cheirar e ouvir
dum odor a mortos
(judeus enlatados
para caberem mais
mas desinfectados)
pelas chaminés
nazis a sair
de te ver passar
de me despedir
de teus olhos tristes
como se existisses.
Nascitura estava
tom de rosa pulcra
eu me declinava
vésper em latim:
impura de todos
gostarem de mim.
Natália Correia in O Vinho e a Lira

--------------------------------------------------------------------------------------------------

PRL - o poema da semana



segunda-feira, 26 de Novembro de 2012

​​​

O mar da minha vida não tem longes.
É tudo água só! E o horizonte
Funde-se no céu. Por sobre a ponte
Marcha, sinistra, a procissão dos monges.
Velas acesas, opas, ladainha,
E o rio deslizando para o mar…
E vêm as raparigas à tardinha,
Buscar a água à fonte, sem cantar.
         Ermida branca no monte,
         Nossa Senhora da Paz…
Peregrino voltei sem ser ouvido.
Rasguei meus pés pelo caminho ido.
Ai, a calma de tudo quanto jaz
No frio esquecimento! Sobre a ponte,
A procissão caminha. Sob o arco,
         Singrou, sereno, um barco
         A caminho do mar…
Ó perdida visão da minha Ânsia!
Vejo-me só, na lúgubre distância,
Cadáver dos meus sonhos a boiar…
Armando Côrtes-Rodrigues in Antologia de Poemas

-------------------------------------------------------------------------------------------------------------

segunda-feira, 19 de Novembro de 2012

​​​
Maroiço
Mar…oiço
Eu oiço o mar
e do maroiço, espreito o mundo
e sinto com a imaginação
pedras, pedrinhas e pedregulhos
rolados, virados e levantados
pela vida sofrida
de tanta gente
E se Ulisses passou por aqui
ainda não havia maroiço
mas já soprava uma epopeia de
pedra
a haver
nas veias do homem do Pico
Moroiço é obscuro e pedregoso
Maroiço é monumento e claridade
e dele brotam pinheiros e outras
ideias
e uma tremenda vontade
em não ser derrubado.
Manuel Tomaz (2012), Ponto Cardeal, n.º 5, p. 10